Esta não é uma crónica, pelo menos na sua definição mais estrita ou técnica.
Esta é, por assim dizer, a breve e sentida evocação de uma peculiar experiência vivida enquanto finalista do nosso velhinho Liceu, que teve tanto de lamentável como de humanamente dignificante.
O tradicional Baile de Finalistas teria lugar no Pavilhão, o melhor que se arranjara, e não víamos a hora de dar asas ao nosso entusiasmo, à nossa irrefreável vontade de festejar um dia único com os nossos amigos e colegas, num momento também único de alguma independência da vigilância e autoridade dos pais no caminho do crescimento dos nossos corpos e almas de adolescentes sedentos de liberdade e famintos de sonho.
Nesse memorável dia, a maioria dos finalistas vestiria orgulhosamente a Capa e a fatiota, pagas a peso de ouro (quem podia). Apesar de um bom percurso escolar, esse não era, definitivamente, o meu caso. Era a escada para um sonho sem degraus. Tão belo, distante e intocável como um arco-íris.
Lá está, o dinheiro escasseava e os sacrifícios familiares estavam penhorados a outras prioridades.
A renda de casa, uma pensão de invalidez paterna e o “puxar pelo bordado” materno que tinham de esticar até ao fim do mês para que houvesse pão à mesa e duas refeições diárias falavam mais alto.
Ainda assim, a muito custo, depois de empedernida insistência e capacidade de negociação (a obrigação de ficar sem sair durante uma semana, em troca de duas ou três horas de comemoração), lá se conseguiu desenrascar do parco orçamento familiar um troquinho para o bilhete e para um “refresco”.
Éramos, à data, quatro colegas de turma e inseparáveis amigos. Um de nós, que infelizmente já partiu, embora dispusesse de condições para vestir a Capa, desfilar, participar na cerimónia religiosa da Sé e jantar com a turma ou com os pais e irmãos, recusara-se a fazê-lo por solidariedade connosco e com a nossa diferença.
Ainda me lembro de nos ter confessado que não fora fácil recusar aos seus pais a ensolarada alegria desse dia por que tanto esperavam.
Miudezas descritivas à parte, assistimos ao desfile, à cerimónia religiosa, o jantar foi “jejum” e esperámos ansiosamente pela hora do nosso Baile porque, embora sem as vestes de cerimónia nem a participação nas sessões fotográficas ou rituais, ainda sobrevivia em nós a alegria e encantamento de podermos, por fim, estar entre os finalistas e nos sentirmos iguais aos mais afortunados que nós.
Chegados à bilheteira improvisada na entrada principal do Liceu, como quem colide abruptamente contra um muro de betão, fomos recebidos com olímpico desdém e patética arrogância por um finalista trajado a rigor a quem alguém entregara a “chave da …”, que por via desse “poder” se sentia dono da escola e senhor de decidir quem entrava como finalista, a preço de finalista, ou quem, ainda que sendo finalista, por não envergar a fatiota, teria de pagar a dobrar, caso contrário veria vedada a passagem por aquela absurda barreira de crueldade e discriminação.
Depois de tanto barafustar, legitimamente clamar por justiça ou procurar quem persuadisse a “besta”, tudo se revelaria infrutífero. Ou pagávamos o dobro, como qualquer jovem de fora, não finalista, nem sequer estudante, ou ficávamos penitentemente enxotados à porta, como “cães pulguentos”, entregues à nossa humilhação e inapelável queixume.
Há quem acredite em milagres, na força do destino ou noutra força qualquer capaz de transformar abóboras em carruagens ou chinelos em sapatos de verniz. Eu não acreditava. Melhor, nós, os quatro, não tínhamos quaisquer razões naquele dia para acreditarmos em fadas.
Mas há dias em que o insólito acontece e em que o inesperado torna realidade a superação do muro aparentemente mais intransponível.
Para nosso espanto, abeiraram-se da nossa comum angústia várias colegas de turma trajadas a rigor, que, estranhando o nosso desconsolo e indisfarçável revolta, tiveram a criativa lembrança de sugerir que colocássemos sobre as nossas roupagens toscas (as mais arranjadinhas e asseadinhas que tínhamos para a ocasião) as suas Capas de “fada”.
“Trapinhos” cobertos pela generosidade, compreensão e solidariedade daquelas quatro “fadas-madrinhas”, o “bruxo-mau” viu-se, enfim, sem argumentos para nos cobrar arbitrariamente o dobro ou, no limite, nos deixar do lado de fora, entregues ao frio da noite e à impotência perante a sua inamovível cretinice e malvadez.
Hoje sei que esse foi o simbólico momento da nossa Bênção das Capas… por mãos de fadas!
Infelizmente, ainda me lembro do nome desse jovem a quem não consigo adjetivar. Só por curiosidade, era meu vizinho. Jogávamos futebol aos fins de semana.
Umas tiras de pano mudaram-lhe o nome e a essência.
Naquele dia achou de travestir-se de uma espécie de mordomo do palácio de Buckingham, com plenos poderes para selecionar quem entrava ou ficava no “olho da rua”.
Não era mais nem menos finalista que nós. Apenas um rufia embrulhado num fato, como tantas outras almas desabitadas a coberto de qualidades postiças.
Confesso que volvidos 34 anos não esqueci esse momento de deceção e amargura, que em mim permanece como ferida aberta, como não encontro no mais fundo de mim razões para não repudiar esse inominável gesto e quem malevolamente o praticou.
Contudo, e isso é o que de facto “conta” na minha memória e coração, reservo um lugar de eterna gratidão para as “fadas” que nos abrigaram no seu caloroso manto de ternura que o tempo, nunca por nunca, deixará amarrotar ou perder cor.
Deixo apenas, a concluir, uma palavra de estímulo a todos os finalistas, com fato e Capa ou sem eles. Desejo que sintam o mesmo orgulho no seu dia e o brio de o poderem gozar com dignidade, alegria e sem as nuvens de qualquer constrangimento ou exclusão.
Que o vosso dia seja de festa, e com razões de força maior ainda, se tiverem presente na mente que outros não tiveram ou não têm a mesma sorte ou igual privilégio.