No momento em que escrevo, como tantos milhões de portugueses, acabo de descobrir que sou mais uma pessoa “lá de casa”.
De resto, quer se queira, quer não, na boca de alguns comentadores “iluminados”, “explicadores” ou “tradutores”, residentes ou visitantes, que pululam um pouco por todos os canais de televisão ou da rádio, os telespetadores ou ouvintes (supostamente menos “iluminados” e informados que os ditos cujos) são pessoas “lá de casa”.
As especialidades são muito variadas. Temos o “comentador jornalístico-político”; o “comentador mix político&entertainer”; o “comentador político de carreira” ou o “analista-jornalista económico”, com ou sem a bengalinha dos gráficos deste mundo, e do outro, para todos os gostos, leituras, conveniências e manipulações.
Esteja no seu local de trabalho, em viagem ou a almoçar na cantina, quem acompanha a atualidade informativa ou quem tenha o “azar” de estar eventualmente sintonizado com a televisão ou a rádio, em alguns programas específicos, sujeita-se a apanhar com esses enciclopedistas do Renascimento, a papaguear “de Cátedra”, como quem explica Cibernética para Totós, ou como quem fala de “Inglês Técnico” a inocentes criancinhas em pré-aquisição de linguagem.
A meu ver, temos em mãos um caso de clara injustiça, para não dizer de manifesta e descarada discriminação.
Então (pergunto-me eu) por que carga de água não se dirigem às pessoas “lá do café”, às pessoas “lá do restaurante” ou, ainda mais grave, às pessoas “lá das salas de espera de hospitais e clínicas”? Também não são gente? Ah, mãe “cui nervos”! É de ir aos arames!
Na área desportiva, também merecedora de análise, o caso dos comentadores agrava-se. Basta termos, por exemplo, o senhor Freitas Lobo ao microfone, e um jogo de futebol transforma-se de imediato numa espécie de código em sinais de fumo só acessível a quem domine o hermético “freitaslobês”.
Além disso, dada a paixão incontida e as figuras de estilo de Freitas Lobo, um jogo entre solteiros e casados ganha logo a qualidade estética e literária de um Barcelona-Real Madrid ou um workshop de bordado, com tipos de linhas, entrelinhas, linhas subidas, caseados, ponto-cruz…
Já se por acaso num desafio de futebol existir uma grande penalidade, mas os ilustrados comentadores decidirem que não é, não é.
E então se for acompanhado da catrefada de fotocópias e fotografias de todos os planos, e outros, do comentador picareta-falante Pedro Guerra, grande glória de futebol do Damaiense, não há quem prove o contrário. Nem que Deus desça à Terra. Até porque Deus não jogou futebol e, como diz Pedro Guerra, é preciso ter jogado futebol para saber de futebol. José Mourinho, como se sabe nunca jogou futebol, logo está a milhas dos doutos conhecimentos futebolísticos de Pedro Guerra. Parece-me absolutamente lógico.
Sobre lições de anatomia e toda a sorte de lesões e mazelas também não faltam comentadores especialistas de fazer inveja a ortopedistas, fisioterapeutas e cirurgiões na área da medicina desportiva.
No fundo, ser pessoa “lá de casa” é arriscar-se a ser presenteado com gratuitos atestados de ignorância, esses sim, passados por alguns (e não são poucos) pseudo-intelectuais ou pseudo-especialistas.
Poderá, contudo, dar-se o caso de estarem a fazer publicidade manhosa de uma loja “online” de artigos para o lar que dá pelo nome de “Pessoas lá de casa”. Está na net. A sério.
O mais irónico é que ainda lhes pagam, e ao que se sabe, jeitosíssimas quantias, na ordem de milhares de euros, quando muitas pessoas “lá de casa” ou de “lá de onde o diabo perdeu as botas” pagariam dobros pela divina graça de não os ouvir.
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