A Rua do Frigorífico


Dou sempre por mim a pensar o quão paradoxal é a circunstância de a Associação Protetora dos Pobres ficar situada numa rua com uma designação associada ao frio – a Rua do Frigorífico.
Desde criança que sempre achei curioso o nome daquela rua da nossa cidade. Talvez por isso, ainda hoje, aquela seja uma das poucas ruas secundárias do Funchal que conheço, apesar da sua discreta localização.
Os novos-pobres, os mais antigos ou os pobres-envergonhados misturam-se ali naquela rua, muitas vezes durante o dia e, em muitas outras (infelizmente cada vez mais), protegendo a identidade e dignidade diminuídas debaixo do anonimato da noite.
A cidade, a da festa e dos navios de cruzeiro, está toda iluminada, toda ela é um presépio, mas é ali, naquela rua com nome de frio, que há uma gambiarra com mais luz e colorido para quem, pelas mais diversas circunstâncias da vida, a perdeu ou acredita ser filho de um Deus-menor.
Só quem lhes distribui o pão, o prato de sopa ou a disponibilidade para ouvir os seus queixumes sem insuportáveis paternalismos, castigadoras censuras ou falsos moralismos conhece o seu rosto e a sua história de vida, procurando compreendê-la ou com ela se solidarizar.
Ouvi-los, reservando-se ao silêncio, é mesmo muitas vezes a mais reconfortante palavra e a prova maior de fraternidade que um homem pode prestar a outro homem, sem quaisquer diferenças de estatura.
A Rua do Frigorífico, por antítese, quase por ironia, é essa lareira que empresta por momentos algum calor aos seus corpos enregelados, alívio à sua fome ou um instante de esperança a tantas almas com tão pouca ou nenhuma.
Muitos (alguns mesmo ditos “católicos praticantes”) não lhes reconhecem sequer humanidade, olhando-os de través, ou lançando-lhes falsos olhares de compaixão, quando não mesmo expondo-os ao ridículo, ou responsabilizando-os gratuitamente pelo seu infortúnio, insultando-os com um “Vai mas é trabalhar!”, sobretudo em tempos de tenebroso desemprego, ou simplesmente excluindo-os com o gelo da sua indiferença ou suposta invulnerabilidade. Diz-se que a morte só existe para os outros. Para quem assim ajuiza, o mesmo se aplica à miséria e à exclusão. Falso pressuposto.
Disse uma vez Gabriel Garcia Marquez que “Só se olha para outro homem, de cima para baixo, para ajudá-lo a levantar-se do chão.”, mas não é esse o gesto de quem fala de solidariedade e de humanismo apenas quando é Natal, parecendo sempre bem dizê-lo à mesa do café ou em discursos politicamente corretos nos jornais e televisões.
Felizmente, há uma Rua do Frigorífico que, em lugar de representar frieza, simboliza calor e acolhimento para os que a vida deserdou ou dela se deserdaram, não cabendo aqui mais justos ou menos justos julgamentos éticos ou morais.
Infelizmente, por paradoxo, tal como comecei, há cada vez mais ruas da mesma natureza e com o mesmo propósito porque um Estado, que deveria ser Social, se tornou cada vez mais Privado. Privado dos seus princípios e privado de algumas das mais elementares e democráticas obrigações que deveria assegurar aos seus cidadãos, sobretudo aos que cairam no “empobrecimento lícito”, em nome de caprichos neoliberais, do sistema nervoso dos mercados, do egoísmo e da ganância de especuladores e agiotas da alta finança, preferindo salvar bancos e cofres cheios, que só alguns veem, nos seus natais de pés-de-barro, feiras de vaidades, presunçosos foguetórios, restos de caviar e despudorada desresponsabilização.

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“Nem rei nem lei (…) Este fulgor baço da terra / Que é Portugal a entristecer”, já dizia Pessoa

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